A má ciência é um problema maior do que imaginamos…

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Se você trabalha com ciência ou se interessa pelo tema, deve saber que uma publicação em um periódico renomado não é sinônimo de um bom estudo. Nos últimos anos, temos conhecido alguns resultados da má ciência na sociedade. Já em 2023, tivemos um recorde: mais de 10.000 artigos foram retratados. O fato de termos números cada vez maiores de retratações de artigos guarda problemas muito mais complexos: devemos confiar na ciência? Como os estudos científicos influenciam na tomada de decisões?
 
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Imagem autoral.
 
Uma ciência ruim está atrelada à falsificação e fabricação de dados em pesquisas, provenientes de falhas metodológicas, viéses ou interesses ocultos. Quando esses estudos passam a fazer parte de referenciais teóricos e metodológicos, começam a emergir sérios problemas para áreas da ciência, como, por exemplo, a dificuldade em construir uma abordagem cumulativa sobre um assunto, devido à ausência de uma base confiável.
 
As fraudes em pesquisas podem trazer grandes estragos, perpetuados ao longo do tempo, como foi o caso da relação entre vacinas e autismo ⬇️
 
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Linha do tempo da retratação de Wakefield: o movimento antivacina

1998: 28 de fevereiro, o gastroenterologista Andrew Wakefield relata no The Lancet que sua equipe encontrou uma “síndrome genuína”: uma ligação entre a vacina contra sarampo, caxumba e rubeóla e um risco aumentado de autismo (Lancet 351, 637-641, 1998).
 
2000: 6 de abril, Wakefield e o patologista John O’Leary apresenta uma pesquisa em um comitê do Congresso dos EUA mostrando que 24 de 25 crianças autistas testadas tinham vestígios de vírus do sarampo no intestino.
 
2002-2004: numerosos estudos publicados no BMJ, The New England Journal of Medicine, The Lancet e outros periódicos não encontram nenhuma ligação entre MMR e autismo.
 
2004: 6 de março, dez autores no artigo de 1998 emitem uma retratação (Lancet 363, 750, 2004) e o editor do The Lancet diz que a revista não deveria ter publicado o estudo (Lancet 363, 747-729, 2004).
 
2010: 28 de janeiro, o Conselho Médico Geral do Reino Unido determina que Wakefield agiu “desonestamente e de forma irresponsável e mostrou desrespeito insensível” pela confusão de crianças envolvidas na controvérsia de sua pesquisa.
2 de fevereiro, The Lancet retrata o artigo de Wakefield de 1998, observando que elementos do manuscrito provaram ser falsos.
 
Fraudes como essa têm consequências diretas na vida humana. Quando trabalhos com evidências falsas são divulgados, passam a contribuir para a aplicação de tratamentos ineficazes, bem como causam sofrimento em pacientes e famílias com falsas esperanças. Além disso, podem desencadear tratamentos perigosos, e até levar à morte, como foi o caso de uma mulher que tomou cúrcuma intravenosa para tratar um eczema.
 
Para que pesquisas fraudadas impactem negativamente as nossas vidas, existem maneiras pelas quais elas são construídas e lançadas à comunidade científica ⬇️

As faces das fraudes científicas:

Manipulação e fabricação de dados:

Pesquisadores alteram, fabricam ou relatam seletivamente dados para fazer com que os resultados pareçam significativos.
Para isso, usam métodos como:
  1. Duplicação e manipulação de imagens: a reutilização de imagens de microscopia em diferentes experimentos;
  1. Seleção seletiva: apenas relatam resultados que apoiam uma hipótese e omitem resultados conflitantes;
  1. Dados embelezados: suavizam variações para fazer com que as tendências pareçam mais fortes.

Escrita fantasma e autoria falsa:

Pesquisadores pagam ou são pagos para ter seu nome em um artigo que não escreveram.

Fraude de citação e manipulação de fatores de impacto:

Pesquisadores pagam para que seus artigos sejam citados para aumentar as classificações.

Revistas predatórias:

Periódicos que publicam qualquer coisa por uma taxa, sem revisão por pares adequada. Muitas vezes, elas parecem ser legítimas.
 
📢 Apesar disso, precisamos falar sobre como o papel prevalescente das publicações científicas influencia a cultura de fraudes em pesquisas.

Os pilares da cultura “publicar ou perecer”:

  1. Cientistas estão sob pressão para publicar com frequência e alavancarem suas carreiras;
  1. Periódicos preferem descobertas inovadoras a estudos negativos ou de replicação (aspecto proveniente do sensacionalismo científico);
  1. Resultados negativos e estudos de replicação serem pouco aceitos leva à manipulação de dados para garantir um resultado positivo;
  1. Revisores são trabalhadores não remunerados. Muitas vezes, fazem verificações rápidas e superficiais devido às restrições de tempo;
  1. Revisores acabam focando na narrativa e nas conclusões, não dando muita atenção para os dados brutos (o que facilita a passagem de resultados manipulados).
 
Assim, esses pilares vão estruturando o jogo da fraude:
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Entrando no jogo:

→ Pressão extrema para publicar a qualquer custo;
→ Incentivo da fraude e manipulação de dados;
→ Proliferação de periódicos predatórios e o retardo do progresso da ciência;
→ O desperdício de recursos por fraude e má ciência, além de minar a confiança da sociedade.
 
Tudo isso leva ao ponto de chegada (e também partida): a exploração de cientistas e o enriquecimento de editores. Cientistas fazem todo o trabalho de graça, mas os periódicos cobram taxas exorbitantes pela publicação e acesso.

A ciência não pode efetivamente se autocorrigir, a menos que essas questões sistêmicas sejam abordadas:

✔️ O fim da expectativa tóxica de que cientistas devem publicar constantemente, nem que precisem arriscar suas carreiras para isso.
✔️ Realizar uma reforma nos incentivos à pesquisa (valorizar a qualidade em vez da quantidade).
✔️ Impulsionar resultados negativos e estudos de replicação nos periódicos.
✔️ O fortalecimento da revisão por pares, para ajudar a capturar dados manipulados antes da publicação.
✔️ Nossa avaliação crítica dos estudos que lemos é fundamental (está publicado não é sinônimo de um bom estudo).
 
💡
A ciência ainda é a melhor maneira de entender o mundo ao nosso redor, a melhor maneira de progredir socialmente. Mas, a ciência é atravessada por questões humanas significativas que precisam ser abordadas. Por isso, uma avaliação crítica da ciência é fundamental.
 
E você, usa critérios para saber se uma pesquisa é confiável?
 
Não esquece de compartilhar esse conteúdo com alguém que também precisa desenvolver um olhar crítico sobre a ciência!
 
👋🏻 Até o próximo post!